Meu quarto azul-anil
Em qual porta eu volto pra ele?
Eu escolhi que as paredes do meu quarto fossem azuis quando era criança. Lembro bem do dia que meu pai chegou para me contar que pintaria a casa e eu podia escolher a cor do meu quarto. Não pedi tempo pra pensar, respondi de pronto: “azul”. Porque azul era a cor do meu CD favorito da minha banda favorita, Calypso. Porque era a cor do céu. Porque eu já achava azul a cor mais bonita. Nem precisei explicar esses porquês. Mesmo que meus pais não tivessem perguntado, depois entenderam.
Em poucos dias, o pintor já estava mexendo uma lata enorme de tinta azul-anil. Achei a cor linda. Ele torceu o nariz com um ar de preconceito, mas eu debochei. Pedi que pintasse umas nuvens, ele disse que não dava: a tinta era grossa demais. Depois, foi ele mesmo quem sugeriu pintar uma das paredes com um tom de azul mais claro, disse que dava pra fazer uma mistura. Eu topei, e assim foi feito. Durante muito tempo, dormi e acordei num quarto azul. Eu amava o meu quarto azul. No fim das contas, até o pintor gostou.
Meu quarto azul me cabia. E era o mundo pra mim.
Esta semana, Nataly, uma das minhas melhores amigas da infância teve uma filha, Maria Cecília. O enxoval dela é todo azul. Já chegou ao mundo irreverente. Sorri desde que soube que assim seria e não esperava menos — crescemos juntas, Nataly, eu, Marta, e nosso mundo sempre foi meio irreverente mesmo. Esse tom segue sendo o começo de muitos mundos.
No meu mundo azul estava tudo bem porque lá eu tinha meus CDs, DVDs, uma tevê de tubo em cima de um tamborete, meu computador numa escrivaninha gigante e um guarda-roupa cheio de pôsteres de artistas que eu gostava. Ah, e meus ursos de pelúcia. Não achei nenhuma foto real do meu quarto naquela época para ilustrar, infelizmente.
Quando minha irmã nasceu, era hora de pintar a casa de novo — e eu pude escolher mais uma vez. Dessa vez, lembro que fui influenciada. Pessoas diziam que o azul “encolhia” meu quarto, e “amigos” zombavam da minha escolha: “azul num quarto de menina?”. Ô povo besta.
Mas o fato é que eu também passei a me incomodar com o azul. O que me cabia passou a apertar, me cansar. Era azul demais.
Escolhi pintar o quarto de rosa. E também fui feliz no quarto rosa. Mas, com o tempo, ele também começou a cansar, a incomodar a vista. Talvez exista uma explicação arquitetônica pra isso — mas prefiro acreditar que era só eu, saindo de lugares onde já fui feliz, mas que já não me cabiam mais.
Pelo que lembro, passei bem menos tempo no quarto rosa do que no azul-anil. Ou talvez não. Talvez só tenha sido o azul que me marcou mais. Até hoje lembro daquele quarto.
Talvez, na infância ou na adolescência, eu fosse mais influenciada pela opinião dos outros — mas, ainda assim, eu não tinha medo de dizer não. Pelo contrário: saía das situações sendo uma criança irreverente e atrevida, que tinha a resposta na ponta da língua. Nunca fui mal educada, mas também não deixava que pisassem no meu calo. Talvez eu conhecesse melhor meus próprios limites naquela época do que hoje, quando me pego, tantas vezes, ultrapassando os meus só pra não ultrapassar os dos outros.
De vez em quando, lembro dessa menina atrevida que me habitava — e que hoje quase não aparece. Talvez ela tenha se deixado acobertar por uma adulta cheia de “empatia” e senso de coletividade. “Minhas atitudes ressoam no todo”, penso. Mas qual o limite disso? Até onde a gente tem que ouvir o “não saia batendo a porta”? Até quando posso — mas não devo — falar dos idiotas e das idiotices que praticam? Até quando tanta diplomacia?
E fico me perguntando: como voltar a ser ela sem precisar pedir desculpas por isso o tempo todo? Pinto o quarto de azul novamente?
No primeiro texto dessa newsletter, aconselhei: “traga a sua criança pra perto”. Não é só o saldo positivo dessa criança que você deve trazer pra perto. Traga ela por inteiro. Com seus exageros, suas respostas atravessadas, sua intuição certeira e sua coragem quase inconsequente.
Queria chamar de volta essa criança irreverente e atrevida, pra bater umas portas por mim... Volte, menina. Bata mais portas. Escolha pintar mais paredes de azul. Dê respostas tolas a quem lhe faz perguntas tolas. Desrespeite quem te desrespeita.


